studium horror

Corte


A história de Eisenhauer chegou ao conhecimento das autoridades da Cidade Alta nos últimos dias. Embora boatos já fossem disseminados entre os moradores dos bairros decadentes, as alegações eram frágeis, tidas como lendas, frutos da fértil imaginação popular. O demônio Eisenhauer, chamavam-no. Não admira que a Alta Ordem tenha demorado a considerar o rumor, tão emaranhado em ornamentos místicos. Era dito que o homem, gerado no ventre de um cadáver, fora conduzido na infância por seres do escuro, incorporando suas intenções e habilidades nefastas. Movia-se como uma sombra. Poderia convencer uma pessoa a fazer qualquer coisa. Extraía as almas de homens e mulheres e os usava como marionetes para perversos fins. A Alta Ordem busca separar a lenda e o fato em relação a Eisenhauer. Visto que a Ordem o mantém preso nas Torres Solitárias, creio que não demorarão a desvendar por completo o mistério de suas ações. No entanto, acredito que se a Ordem for deixada ao seu próprio funcionamento, nada será divulgado e o caso eventualmente afundará no esquecimento. Seria mais uma lenda para sustentar as eufóricas crenças da população. Então, publico os relatos daqueles que estiveram no cativeiro de Eisenhauer, que foram amaldiçoados pela ocasião de cruzar o caminho deste ser, possuído por desejo tão ferrenho e brutal. Aos questionadores da veracidade dos documentos, temo não poder oferecer evidência tal que os satisfaça. Mas preferiria eu que fossem falsos, que eu não pudesse ver as marcas de sangue grafadas em diversas páginas e que os corpos que contemplei no chalé de Eisenhauer, onde encontrei os escritos, ainda respirassem, que não estivessem estranhamente disformes. Talvez assim ainda pudesse fechar os olhos à noite. Que haja propósito nesse ato, eu imploro, que toda essa angústia não tenha sido em vão. Nos documentos que apresento agora, não alterei sequer uma vírgula. Certamente não passarei despercebido pela Ordem e por isso não assino autoria.


Doc nº 0

A seja quem for a desafortunada alma que puser as mãos nesses escritos.


Doc nº 1

Peço a Deus que nos livre deste jugo, mas a cada irmão que é retirado da cela e não mais retorna, a fé que resta no meu espírito desvanece. Nós nunca vimos o captor. Em nossas memórias, seguíamos a vida costumeira, quando de súbito acordamos prisioneiros. A criatura que nos maltrata age na escuridão das noites e no silêncio das madrugadas, quando estamos mais vulneráveis. Precisamente como surgimos no cárcere, desaparecemos dele. Sem ruídos, nem rastros. Apenas notamos a falta de um dos nossos quando acordamos, escutando lamentos e clamores que não compreendemos, vindos do lado de fora. Não sabemos por quê. Nem sabemos mais a quantos dias estamos trancados. Meu nome é Ernest Baumann e deixo registradas nesse papel as memórias minhas e de meus companheiros. Sou o único que pode ler e escrever. Isso me faz acreditar que tenho um propósito.


Doc nº 2

Ziegmann voltou à cela, assustado como um animal cercado pelo predador. Tinha cortes e perfurações espalhados pelo corpo, nos braços, nas costas, lesões delineadas pela engenhosidade humana e uma lâmina afiada. Nas costas, havia traços perfeitamente paralelos, como se feitos por um ser de extremo perfeccionismo e apreço pela geometria. Nos braços, havia múltiplos pontos minúsculos e próximos, perfurados, semelhantes a ferroadas de um enxame de insetos. Ziegmann balbuciava palavras sem significado aparente, pensamentos incoerentes, mas que expressavam, sem sombra de dúvidas, o nítido terror da tortura. Nada conseguimos extrair dele na questão do ocorrido, fora o que claramente observamos pelo seu estado físico e mental. Cuidamos dele com o que podíamos, lavamos os ferimentos ainda abertos com a água que deveríamos beber, tentamos acalmá-lo com canções de fé e esperança. Mas nada pôde conter seus tremores até o momento. Muitos de nós estamos abalados. Jonas, porém, o mais indomável entre nós, levantou uma ideia: se esse é o futuro que nos aguarda, nós temos que lutar.


Doc nº 3

O estado de Ziegmann parece ter estabilizado com o tempo. Suas feridas começaram a cicatrizar e ele voltou a falar, embora seja difícil compreendê-lo. Suas memórias estão turvas, talvez obstruídas pelo evento traumático. Quando Ziegmann consegue expressar suas lembranças, nos conta sobre fortes odores, variados, desconhecidos, irritantes às suas narinas; fala da sensação de ferrões, como se abelhas o atacassem; e de uma voz tenebrosa que recitava palavras estranhas. As visões que recorda são raras, mas lembra dos olhos que o observavam. Ele diz que não eram humanos. Após esse relato, estamos confusos. Nossos ânimos derreteram. Estamos inquietos. Tememos entrar em um sono profundo e acordar como sacrifícios de um perverso ritual, assim como alguns de nós já foram e não retornaram. Jonas, o indomável, está agora de joelhos, entre lamentos, pede perdão por suas depravações. Sinto que cruzamos a linha entre a natureza e o absurdo, o material e o sobrenatural. A Alta Ordem estava certa. Demônios estão à nossa espreita.