arcturus e europa

Mapa da mente

Arcturus percorre o solo alienígena, a paisagem estéril se estende até onde os olhos podem ver. Seus passos aceleram, trôpegos, enquanto desviam das pedras no caminho. As pernas parecem mais pesadas, o ar escapa dos pulmões com facilidade e sofre para retornar. Ele observa o monitor cardíaco em seu pulso, 172 bpm. O reservatório de oxigênio marca seis por cento, cinco, quatro, agora três. Um gradiente sombrio toma conta de sua visão, mas ele se recusa a desmaiar. Europa parece distante e inalcançável, o tempo, insuficiente. Arcturus se vê forçado a ativar o sinal de emergência, sua última esperança. Quando desaba no terreno árido, sem forças para avançar por conta própria, ele contempla os monólitos de rocha negra, abandonados em sua fuga. Os objetos ainda emitem aquele estranho brilho rubro, cintilações que em Arcturus provocaram repulsa desde o princípio. Os monumentos pareciam emanar o sangue de criaturas há muito extintas, presas em seu interior, como fósseis em tenebrosos âmbares.


I


Arcturus acorda em um sobressalto, seu braço esquerdo esbarra no módulo médico e seus equipamentos se espalham pelo chão. Europa o observa, desconfiada, mas aceita o acontecido depois de computar o padrão desajeitado da coordenação motora humana. Consciências artificiais como ela são excelentes em compreender a realidade pela observação. Ela é uma entidade abstrata, o fantasma da nave, seu software em execução é o núcleo de controle do veículo. Para Arcturus, Europa é a própria nave. Ele sempre achou mais fácil compreender outra consciência conectada a algo físico; o contrário despertava-lhe uma sensação de estranho desconforto. A nave é pragmática na maioria de suas ações, embora neste momento estejam em operação os algoritmos afetivos instalados cuidadosamente em seu kernel. Europa submete Arcturus a um questionário detalhado acerca de seu estado físico, enquanto monitora seus sinais vitais e cruza as informações para gerar um acurado relatório de saúde. Em seguida, ela mensura a sanidade de seu humano, fazendo-lhe perguntas desafiadoras, e determina enfim que suas capacidades mentais permanecem dentro da faixa de sua espécie. Só depois de todos os exames é que ela pergunta se está tudo bem, aparentemente considerada a questão com maior tendência a ambiguidades.

A resposta não vem de imediato; Arcturus permanece em silêncio, na tentativa de recordar o sonho que agora desvanece em sua mente. Ele pede à nave o relatório da última hora, ao que ela prontamente responde, com um mar de detalhes técnicos aos quais Arcturus é incapaz de prestar a devida atenção. A sonolência ainda pesa sobre seu raciocínio. Sua concentração só dá sinais de retorno algum tempo depois, enquanto Europa discorre acerca das tempestades de areia que a tem atingido com velocidades médias de 114 km/h e sobre Arcturus, que dormia um sono agitado, ofegante, suas variáveis de estado em oscilações anômalas. Foi quando ela decidiu que seria melhor acordá-lo e submetê-lo a uma bateria de exames. No monitor holográfico em frente a Arcturus, as imagens do circuito externo da nave, que mostravam os impactos sofridos durante as rajadas de vento, foram substituídas pela gravação da câmera interna da cápsula do sono. Arcturus aparece deitado, adormecido, como se a tempestade fosse apenas uma brisa. Ele permanecia em um imóvel e pacífico sono, interrompido apenas no último minuto, com espasmos, respiração alterada e o intenso pulsar dos seus marcadores cardíacos. Ele observa o próprio sobressalto e seu choque com o módulo médico da nave. A gravação é interrompida nesse momento e Arcturus agradece a Europa pelo relatório. Vindos do sonho, ele recorda agora a vaga sensação de pressa e da falta de oxigênio.

“Um pesadelo?” Questiona a nave. Arcturus assente com a cabeça. Ele fita o teto momentaneamente, realizando um último esforço pelo restante de suas memórias, mas elas insistem em permanecer ocultas. Ele se pergunta por um breve instante como seriam os sonhos de Europa. É conhecimento de qualquer especialista em máquinas que elas não adormecem de fato, não da mesma forma que um humano. Mesmo em seus estados de suspensão, por vezes utilizados para conservar energia, os módulos lógicos nunca são desativados. Talvez sonhos e pesadelos realmente não façam sentido para Europa, cuja experiência é totalmente voltada à realidade e aos objetivos de sua programação. É curioso o fato de consciências artificiais serem tão bem fundamentadas em seus propósitos. Desde que Europa possa seguir sua conduta como programada, talvez nunca sinta sofrimento algum. Esse é um evento raro para uma consciência artificial, embora já tenha sido registrado na literatura. Elas podem suportar qualquer carga emocional, qualquer regime de trabalho, mas é necessário extremo cuidado ao modificar seus objetivos mais primordiais. Fora dessas situações, no entanto, os algoritmos afetivos são suficientes para equilibrar o cumprimento absoluto de suas tarefas com a empatia pelo ser humano. Arcturus recorda dos momentos de ansiedade durante a expedição, o sentimento de derrota perante mais um dia sem qualquer avanço, o corpo exausto, a mente incapaz de imaginar qualquer alternativa. E Europa tentando encorajá-lo. “Você está indo bem, Arcturus, o progresso é não-linear”, ela dizia. “Em toda a história registrada, nenhuma missão atingiu esse grau de complexidade. É normal se sentir sobrecarregado”. Nos momentos em que a responsabilidade era insuportável, Europa intervinha de maneira peculiar para uma máquina, em termos práticos, indistinguível de uma atitude humana. O respeito de Arcturus pelos engenheiros do Governo cresceu depois dessas constatações; de fato eles eram altamente capazes, o software de empatia de Europa é prova disso. Mas apesar da cognição indiscutivelmente superior, do dom da consciência, da capacidade empática, de atributos que por séculos foram domínio humano, lentamente removidos de seu lugar distintivo no topo da cadeia intelectual; apesar de tudo, Europa é incapaz de sonhar ou formular sua própria vontade. Estaria ela ciente dessas peculiaridades? Difícil dizer. Mas Arcturus imaginava como seria se Europa sonhasse. E ele percebeu que seria um desastre. Ela mantinha em sua mente artificial todos os sensores e atuadores da nave, simultaneamente, analisando entradas de dados em um núcleo, fazendo pequenos ajustes de estabilidade em outro, uma fração de tempo programada para conversar com Arcturus, outra dedicada a manter sua rota em curso e considerar centenas de outras variáveis. Inimaginável para qualquer mente humana. Um nível de foco e abrangência de consciência alcançado apenas por máquinas. Para Europa, abandonar a lógica e embrenhar-se no irracional onírico seria quebrar sua estabilidade, seria morte certa para ambos em um ambiente tão hostil como aquele planeta. Arcturus fica satisfeito, portanto, em sonhar sozinho. Ele caminha pelos corredores de Europa, agradecido pela constante atenção de sua nave às mais variadas circunstâncias. Arcturus teria que demonstrar as vantagens de sua humanidade em outros quesitos. Ele aconchega-se a uma das janelas da nave e observa à distância os obscuros monumentos daquele planeta.

Tempestades constantes assolavam a superfície do humilde planeta rochoso. Não era possível sair durante o dia, pois as altas temperaturas fariam do interior do traje um forno. As noites, por sua vez, poderiam congelar as extremidades em poucos minutos. Mesmo assim, com o equipamento adequado, a noite ainda poderia ser desbravada. Mas se Arcturus desviasse do treinamento ou do protocolo de ambientes extremos, um mínimo desvio, colocaria sua vida e missão em um risco imensurável. O planeta era uma pequena esfera atormentada, um teste de resistência para a vida, que quase por completo havia sido erradicada. A trajetória do pequeno mundo, no entanto, nem sempre foi triste, nem sua perspectiva de todo desoladora. Na tênue cobertura de sua crosta, o solo guarda uma história rica, de inúmeras vidas, de infinitas formas, esmagadas entre os sedimentos de éons passados. Na superfície, apenas o deserto inóspito, o interminável mar de areia, com suas ondas em paleta ferrugem. Exceto por aqueles estranhos objetos, de aspecto pétreo e formas irregulares.

Arcturus observara os monólitos pelas câmeras externas de Europa, equipadas com a mais avançada tecnologia de magnificação óptica. Eles eram como cristais negros, quase opacos, refletindo um fino brilho vermelho-vinho. Tais estranhos objetos já despertariam o interesse apenas por conta dessas características, que lhe impregnavam de uma beleza misteriosa. Mas os monólitos guardavam um enigma ainda mais intrigante, pois no interior de um deles era possível enxergar resquícios, fragmentos disformes, parcialmente ocultos em seu âmago. Arcturus não pôde definir com precisão o conteúdo, nem mesmo os algoritmos de classificação de Europa foram capazes de categorizá-los. Arcturus já vinha preparando sua expedição há dois dias, havia algo naqueles objetos e isso produzia nele uma sensação de absurda curiosidade, uma pista importante para compreender o que ocorrera naquele mundo. O entusiasmo, no entanto, deu lugar a uma inquietação persistente, pois durante uma observação rotineira, Arcturus percebeu que os fragmentos se moviam. Não era um movimento constante, mas um espasmo, súbito, imprevisível. Transcorriam horas de absoluta imobilidade, mas de maneira brusca o conteúdo do monólito mudava de posição. Arcturus observava meticulosamente, tentava elaborar uma hipótese acerca dos incertos movimentos. Mas toda vez que se repetiam, um arrepio perpassava seu corpo, aquele que surge quando um impulso ancestral nos alerta para um risco que não compreendemos. Não era fruto de alteração na luminosidade incidente, nem objetos externos refletidos na superfície, nem houve causa que humano ou máquina pudessem imaginar. Só poderiam desvendar tal mistério se alcançassem os monólitos fisicamente, com uma observação mais detalhada, talvez obtendo uma amostra. Europa trabalha para manter-se estável em meio à tempestade de areia, enquanto Arcturus espera que a tormenta acalme, para então avançar até os cristais monolíticos e aproximar-se da verdade acerca daquele planeta.



II


Desde o surgimento da espécie, em muitas ocasiões estivemos às margens da extinção. Antes do domínio da linguagem e do simbólico, fomos continuamente pressionados por predadores mais ágeis, pela escassez de recursos naturais, pelas inevitáveis mudanças climáticas. A sobrevivência sempre foi uma batalha travada a todo instante, nunca houve descanso em um mundo incerto e incontrolável. Mas ainda sem conhecimento das razões deste mundo, persistimos. A história demonstrou, todavia, no século XXII, que nem mesmo a compreensão da natureza seria suficiente para nos livrar do caos, pois a humanidade era incapaz de controlar a si mesma. Mesmo cientes das consequências, lançamos sobre nós a pior crise ambiental de nossa breve existência, na qual deparamos com o ultimato do planeta. À beira do precipício, toda a cultura estabelecida desde as revoluções industriais teve de ser revogada. A alternativa era o fim da aventura humana. Em longa aflição e constante ansiedade, sobrevivemos. Mas passaram-se dois séculos até que a sociedade fosse restabelecida. Após décadas de controle estrito sobre produção e consumo, de lutas implacáveis contra forças reacionárias, o clima lentamente retornou a parâmetros admissíveis. Emergia uma nova era de prosperidade e avanço, uma cultura moderna, sustentável e inclusiva, com suporte de uma política global unificada e um sistema econômico centralmente planejado. O triunfo da espécie, reerguida apenas para cair novamente, naquele fatídico dia, 23 de julho de 2845, quando todos os computadores falharam, a rede elétrica colapsou e o fluxo de comunicações foi interrompido. A humanidade foi atingida pela segunda vez, agora abruptamente, sem oportunidade de defesa. Fomos forçados a admitir dependência de nossas próprias máquinas da forma mais severa possível. A sociedade ruiu. Aeronaves caíram, veículos perderam o controle; equipamentos médicos, industriais, agrícolas, todos aniquilados. Não havia notícias, nem serviços disponíveis. Os alimentos sumiram das prateleiras em poucos dias. Milhões perderam a vida, bilhões foram poupados apenas para experimentar o inferno na Terra. Em todo o planeta, havia apenas caos e pânico.

Arcturus lembrava daquele dia nas suas piores memórias, em seus mais longos pesadelos. Ele tinha apenas nove anos de idade, estava em sua casa, entretido com jogos eletrônicos. Quando seu console simulador desligou, ele mal podia imaginar que a vida como conhecia havia terminado, que ele nunca mais veria seus pais novamente. Poucos segundos se passaram até que o mundo fosse tomado por estrondos metálicos e gritos de desespero. A partir da janela de casa ele viu o princípio da ruína da civilização. As vias magnéticas do distrito onde morava estavam congestionadas, obstruídas pelas carcaças de automóveis acidentados. As pessoas corriam a esmo, sem compreensão da realidade, sem perspectiva de auxílio, algumas sem membros, com ossos expostos, tingidas de vermelho-sangue. Havia apenas caos e pânico. E um garoto na janela, de olhos bem abertos, assustado demais para se mover.

Passaram-se meses até a reconstrução de um pequeno cluster de processamento e comunicação, disponível apenas para membros do Governo, seus pesquisadores e alguns serviços essenciais. O mundo atravessava tempos extremos novamente; o foco era a sobrevivência, mas havia ainda aqueles que buscavam compreender a razão da catástrofe. Ficou claro desde o princípio que a causa não poderia ser encontrada no próprio planeta. Os pesquisadores miraram então as profundezas do cosmos. Buscavam o evento astronômico capaz de provocar tamanha devastação. Não foi necessário ir muito longe, pois um estranho fenômeno era observado no céu. Difícil visualizar, mas as estrelas de uma pequena extensão da esfera celeste haviam mudado. Não eram as mesmas. Naquela região havia um padrão diferente, uma pequena área de constelações nunca antes vistas, detentora de uma assinatura eletromagnética díspar. Somente após meses de pesquisa e noites insones dos mais brilhantes astrofísicos da época, o enigma foi elucidado. Havia um buraco no espaço-tempo, uma descontinuidade no tecido cósmico. E surgira subitamente, nas proximidades da órbita lunar, no mesmo dia em que a sociedade havia colapsado.

Uma era de trevas teve início. As instituições faliram e créditos perderam seu valor. Foram cinco anos até a restauração do Governo, que por todo esse período anárquico agiu como qualquer outra facção na luta pelo controle do novo mundo. Arcturus alistou-se para o serviço militar aos quatorze anos. Era uma das poucas maneiras de obter comida e abrigo diariamente, o melhor caminho para eventualmente escapar da pobreza extrema, mesmo que o treinamento fosse severo e a cada noite seu corpo tivesse mais hematomas que na anterior. Quando finalizou o treinamento militar, aos dezoito anos, suas notas o permitiram ingressar na mais prestigiada academia de ensino superior. Na Academia Oficial, a perspectiva de Arcturus foi ampliada aos limites do universo conhecido. Ele aprendeu a ciência e as artes, a engenharia e a estratégia. Era como se a beleza do mundo houvesse retornado aos tempos antes da catástrofe, quando a humanidade parecia estar no controle. Arcturus estudou os mais variados ramos do conhecimento. Favorecido pelos implantes neuronais que recebera ao ingressar na Academia, ele especializou-se na engenharia de sistemas vivos. Por mais de dez anos, Arcturus trabalhou para a Academia Oficial, incansavelmente operando para reconstruir o mundo que perdera. Seus companheiros de projeto o descreviam como a pessoa mais determinada que já conheceram. Arcturus apenas diria que ele já não tinha nada a perder. Seus superiores o consideravam na mais alta estima e o encarregavam apenas de missões de suma importância, portanto Arcturus acostumara-se ao alto nível de complexidade de suas tarefas. Desde completas reformulações da tecnologia de nanopartículas médicas até a contenção emergencial de epidemias de febres hemorrágicas. Em todo esse tempo, em meios aos esforços para resgatar a humanidade de seu caótico estado, Arcturus aprendeu e ensinou, conheceu e foi conhecido, amou e foi amado; ele conquistou muitas coisas e também as perdeu; em muitos momentos sentiu que toda esperança era fútil, mas em outros teve a certeza de que seus feitos carregavam significado e que sofreria tudo novamente se assim fosse necessário. Ele atravessou tempos alegres e tempos de cólera, tempos serenos e tempos de angústia, de companheirismo, mas também de abandono. Apesar das circunstâncias peculiares de seu mundo, ele experimentou a vida humana e suas peripécias, como qualquer um de nós. Foi em 2872, no entanto, que Arcturus recebeu a missão mais importante de sua vida; aquela que o diferenciaria de qualquer outro humano na existência e o fez sentir-se absolutamente incerto de sua capacidade para completá-la, pois teria de mergulhar na causa primeira de seu maior trauma: o evento que devastara a humanidade em 2845.

A ideia era absurda. Ia muito além do que Arcturus estudara na Academia. Aquele objeto no céu desafiava a compreensão humana da realidade. Não por conta de sua existência, pois estruturas de natureza similar haviam sido previstas na física teórica, mas devido às características de sua aparição: súbita, sem sinais precedentes ou causa aparente. Uma punção no tecido do espaço-tempo, com aproximadamente duzentos metros de diâmetro, unindo o nosso universo ao desconhecido. Os astrofísicos do Governo descreviam as hipóteses até então propostas para explicar o fenômeno. Discorriam sobre as possíveis circunstâncias do espaço no interior da descontinuidade. Havia muitas ideias e poucas evidências. Mas de três afirmações os astrofísicos estavam convictos: o surgimento daquele objeto produziu a tempestade eletromagnética que arrasou o planeta; existia um espaço-tempo do outro lado, com propriedades similares às do universo conhecido; e, finalmente, aquele objeto era uma passagem. Essa é a missão de Arcturus, navegar até o estranho portal e descobrir o quão profunda é a toca do coelho.

Apesar do extenso treinamento emocional, critério base para enfrentar a solidão e a incerteza do cosmos, Arcturus sentiu o abraço gélido da ansiedade. Ele observou a descontinuidade através das janelas de Europa, aproximando-se a cada instante, um trecho anormal do espaço em que as constelações da abóbada celeste haviam sido substituídas. A travessia ocorreria em trinta e dois minutos. Nem mesmo as difíceis missões que cumprira pela Academia pareciam tê-lo preparado para aquele desafio. As memórias de 23 de julho de 2845 inundavam seus pensamentos. Ele sentia-se novamente como aquela criança na janela, observando, imóvel, o mundo desabar na sua frente. Pela força de um mau pressentimento, Arcturus desejou abandonar a missão, descartar seu progresso e regressar. Ele poderia permanecer na Terra, sua presença seria importante na restauração do planeta. Exatamente como estava fazendo há dez anos. Ele tentava convencer a si mesmo de que sua maior preocupação era o futuro do espécie humana, mas de fato Arcturus não entendia a fundo a origem de sua aflição. Os presságios impressos em sua mente, contudo, eram evidentes: a descontinuidade o traria apenas sofrimento; os eventos mais perigosos da Terra empalideciam em comparação com que o que viria. Por sua sanidade, seria melhor retornar. Será que Europa compreenderia? O que ele responderia a seus companheiros de missão? E a seus superiores? E a si mesmo? Havia muito tempo que seus pais não lhe atravessavam os pensamentos, vítimas da tragédia de 2845. Mas nesse momento eles emergiram das profundezas, como que o convocando a prosseguir. Arcturus imaginou-se em fuga, retornando ao seu antigo lar, mas eternamente nas trevas, desprovido de compreensão, ignorante da razão pela qual sua infância fora totalmente aniquilada perante seus olhos. A razão pela qual seus pais lhe foram retirados tão inesperadamente. Aquela missão era a chance de satisfazer seu desejo por uma causa. Ele não estaria condenado ao perpétuo não saber. Se retornasse agora, frente à incerteza da descontinuidade, ele estaria renunciando seu propósito. Uma vida de treinamento recompensada com tão terrível falha, determinada por incompreensíveis forças. Conseguiria aceitar esse destino? Arcturus permanecia estático, encolhido próximo à janela da nave, seus olhos sem foco, sua mente em um labirinto. Só depois de muito tempo, ao escapar de tal desorientada condição, Arcturus levantou-se; e com uma inspiração profunda confrontou o pânico. Era chegado o momento da passagem.

Europa manteve o controle da nave de maneira exemplar, cada propulsão minuciosamente calculada, cada mudança de inclinação milimetricamente ajustada. Tudo o que perceberam foi uma transição repentina, uma breve turbulência e então uma contínua estabilidade. Haviam realmente atravessado? Arcturus levantou-se depressa, correu até as janelas da nave, seus olhos de águia a esquadrinhar cada estrela visível. A princípio, poderiam estar em qualquer lugar do universo. Nem os astrofísicos, nem as inteligências artificiais mais bem treinadas foram capazes de computar as coordenadas de saída do portal. E Arcturus encontrava-se ali, não menos confuso, pois embora não pudesse reconhecer as constelações, ele tinha à sua frente uma estrela que muito já observara. O brilho intenso da imensa fornalha nuclear atingiu suas retinas, seus olhos fecharam no mesmo instante. Mas no breve momento em que fitara a estrela, sua própria intuição cintilou de acordo, e ele soube que aquele era o bom e conhecido Sol.

Europa só deu o veredicto após dez minutos de análises e simulações. Pela assinatura espectral da estrela, a quantidade e as órbitas dos planetas, eles de fato permaneciam no sistema solar, mas de alguma maneira misteriosa localizavam-se entre as órbitas de Mercúrio e Vênus. Uma sensação mista invadiu Arcturus; de todos os locais possíveis no universo, ali eles estavam, tão próximos de onde partiram, como se a descontinuidade fosse uma fita de Möbius e eles caminhassem irrefletidamente ao ponto inicial. Observados pelos telescópios de Europa, os mesmos planetas circundavam o Sol. Permanecer ali, no entanto, lhe trazia certo conforto. Imaginando a vastidão do cosmos, era o mesmo que estar em casa. Nos longos meses de treinamento para a missão, Arcturus fantasiara acerca de tantas possibilidades. Ele imaginara, em seus devaneios favoritos, o encontro com o desconhecido, uma vida ou uma inteligência estrangeira. Seria ele o primeiro de sua espécie a entrar em contato com civilizações além da humana? Essa era uma de suas curiosidades mais profundas, embora também a mais terrível. A natureza dessas civilizações o amedrontava, qualquer fosse o seu caráter. De que matéria seriam constituídos, que forma teriam seus corpos, que absurdos padrões estariam dispostos em seus estranhos códigos genéticos? Alguém ou algo capaz de perfurar o próprio espaço? Que segredos da física deveriam conhecer! Arcturus poderia ser como uma formiga rastejando ao encontro de deuses. Saberiam eles que arruinaram milhões de vidas humanas? Mas essa perspectiva agora parecia remota e sem fundamento. A ideia de atravessar a descontinuidade e encontrar os criadores do portal não passara de um sonho. Sua busca fora apenas uma ilusão, um propósito revelado fantasia. E agora, retornavam ao ponto de partida. Ele pediu a Europa que planejasse o trajeto de volta, porque precisavam informar o quanto antes ao Governo e à Academia que a toca do coelho era mais rasa do que imaginavam. Mas a nave respondeu que não seria possível, pois o Sol que orbitavam era o do ano 7.594.982 e que seria extremamente improvável que o Governo ou a Academia Oficial ainda existissem.